SUS: um sistema muito além da saúde

Como é nossa vizinhança? Esta pergunta simples pode instigar o olhar do pesquisador  a compreender as diversas realidades. A primeira mesa-redonda desta quinta-feira trouxe como questão exatamente o olhar sobre a realidade da América Latina a partir de análises dentro do tema proposto: educação, saúde e inclusão social. A professora do Instituto de Saúde Coletiva ,  Yeimi Alexandra Alzate Lopez (UFBA), e a mestra em Saúde Coletiva, Diana Carolina Ruiz (UFBA), ambas colombianas, foram as palestrantes dessa mesa coordenada pelo professor Silvio Benevides (UFRB).

Yeimi Lopez iniciou a sua apresentação ressaltando a importância de nos familiarizarmos com culturas existentes. Citou  Boaventura Souza para lembrar a capacidade de descolonização do pensamento, focando na colaboração transnacional que provoca o diálogo dos temas tanto na Colômbia quanto no Brasil. “Nós chegamos a um consenso que o que nos trouxe para o Brasil foi a busca pelos direitos. Vocês vão dizer, como assim? O que significa essa busca pelos direitos? Nós vamos falar do direito a saúde do direito a educação. Para poder contextualizar isso melhor, Diana vai poder contar o não direito a saúde na Colômbia. E depois a gente passa um pouquinho para o Brasil e vamos estabelecer esta ponte”.

Diana Ruiz afirma que, no Brasil,  o Sistema Único de Saúde – SUS – é uma pesquisa importante. Mostra, de forma ampla, uma realidade social que se diferencia muito da Colômbia. O país de origem da mestra em saúde coletiva sofre com a falta de políticas públicas nessa área. “A Colômbia é o exemplo materializado do que as reformas neoliberais podem fazer com um país”, afirma.

Historicamente, a Colômbia enfrenta há mais de três décadas problemas sociais causados pela má administração do Estado. No caso da saúde, houve a partir dos anos de 1990, um estímulo internacional para que países latinos americanos implantassem reformas neoliberais em pastas basilares como educação e saúde. Diana Ruiz conta que o governo colombiano em 1993 fez e instaurou a Lei 100 que trata de uma reforma na área de saúde que mina o direito do cidadão. Foi uma reforma elaborado sem a participação popular, sendo uma imposição ao povo colombiano. Mesmo a saúde sendo apontada pelo governo como direito universal, na prática, o acesso é limitado, principalmente para quem mora na área rural.

O direito à saúde na Colômbia é oferecido de duas formas: o primeiro é o Regime de Contribuição (RC), para os empregados e seus familiares com uma contribuição mensal para o governo e o outro é o Regime Subsidiado (RS), em que o governo assume a população carente e oferece apenas o necessário, sem dar acesso a um sistema que pensa na saúde preventiva.” Quando você divide a saúde você atrapalha completamente  a visão de saúde integral com foco na atenção primária”, explica Ruiz.

Em termos de benefício,  a Lei 100 não garante que o cidadão colombiano tenha um atendimento que melhore a própria condição de vida: um ciclo que sem educação não há saúde, sem saúde, não há trabalho. “Da forma como a Colômbia apresenta a ideia de saúde atrapalha a administração de campo porque divide as pessoas em quem pode pagar e as que não podem. Quem tem condições tem acesso a um tipo serviço, quem não pode, tem acesso a outro. Mesmo o sistema de saúde colombiano constar na Constituição como direito, a gente não consegue isso na prática. Outra questão bem importante é com relação as empresas de seguro. A gente entregou a administração do sistema de saúde colombiano para as empresas de seguro privado. Isso faz com que essas empresas recebam os recursos do Governo e não retornem o mesmo investimento na saúde. Quando você entrega o serviço para uma empresa privada, eles se mantém distantes das pessoas criando todas as barreiras de acesso ao serviço”, lamenta a mestra em saúde pública.

O conflito no território colombiano, questão transversal, afeta o trabalho, a educação e também a saúde. Fazer parte de um movimento popular ou fazer um mobilização social na Colômbia é um risco. As ações paramilitares apoiadas pelos governos durante décadas e a reação de movimentos como as Farc e o ELN resultaram na luta armada. As estatísticas mostram que o número de mortes são elevados e assustadores. Em agosto de 2018, o Centro Nacional de Memória Histórica (CNMH), entidade governamental, revelou que mais 260 mil pessoas morreram em seis décadas. A maioria era civis, pouco mais de 215 mil. O restante, paramilitares. Diana Ruiz afirma que  existem movimentos sociais, “mas cada vez mais são menores por causa de diferentes forças do próprio Estado sem ter uma força revolucionária. Este é o caso do sistema de saúde colombiano”.

Brasil: saúde para quem?

Mas o que dizer do Brasil em termos de saúde pública? Para Yeimi Lopez, a Colômbia é o futuro do Brasil. “Tudo está caminhando para esta situação. A Colômbia tem muitos anos de experiência com o neoliberalismo. Nós estamos falando do sistema de saúde mas também estamos falando do sistema de educação. O que acontece com as políticas públicas, me desculpa as palavras de cunho popular, eu gosto muito delas, quando a gente enfia o pé na jaca é perda de direitos”.

Lopez conta que a escolha de sair da Colômbia e vir para o Brasil, passou pela questão da saúde. Na época, cursava a faculdade de Antropologia na Universidade de Antioquia, em Medelín, quando foi diagnosticada com leucemia mielóide crônica. Mesmo participando do sistema de saúde que contribuía para o governo, tipo de plano popular que garante facilidade ao cidadão como os divulgados no Brasil, Lopez percebeu todas desigualdades sociais ao direto a saúde implantadas no seu país. Ao estudar antropologia médica, descobriu que haveria possibilidade de fazer mestrado e doutorado em universidades públicas do Brasil sem desembolsar valores altos, pois o governo colombiano taxa mensalidades até mesmo em universidades públicas para se fazer uma especialização, dificultando o acesso ao aperfeiçoamento profissional. Outra dado importante refere-se ao trabalho. Hoje, 50% de colombianos não têm carteira assinada, os concursos públicos são poucos e a terceirização predomina no setor público. Para Lopez, a relação entre saúde e trabalho está totalmente traçada. “Porque se você não tem emprego você não tem como pagar a saúde, você fica no plano da solidariedade social e você recebe muito menos por saúde na Colômbia”.

Ao estudar a área de saúde coletiva no Brasil, Yeimi Lopez percebeu a potencialidade do SUS e suas possibilidades em minimizar a pobreza em países cujo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é baixo. Analisa que a Constituição brasileira de 1988 foi uma conquista dos movimentos populares incluir em sua redação uma lei que garanta o acesso universal à saúde no artigo 196 que diz: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Este direito conquistado pelo povo brasileiro não foi dado por ações governamentais. Foi preciso a sociedade como um todo realizar uma mobilização em torno do assunto para propor uma pauta que se fazia urgente num país com dimensões continentais e extrema desigualdade social. “Acho que muitos brasileiros não tem esta noção do que significa ter o direito a saúde garantido e que o SUS seja um desdobramento desta noção. É uma coisa que não tem em nenhum lugar do mundo. Com 200 milhões de habitantes, o que significa que a saúde é um dever do Estado?  É uma via totalmente contrária do que aconteceu em 1991 com a constituição nova da Colômbia que retira o direito a saúde pública dos cidadãos e abre espaço para o livre mercado na saúde. São dois fatos totalmente diferentes. E no caso do Brasil essa inclusão da saúde como direito do cidadão e um dever do Estado, não foi dado por um governo bonzinho, mas foi conquistado pelo povo. Quando a gente fala de movimentos sociais a gente não pode deixar de falar da reforma sanitária brasileira. Este movimento nasce no bojo da própria ditadura a partir dos anos 1960. Em 1970, todas as organizações, inclusive, as Intereclesiais, fizeram parte deste movimento e começaram a batalhar por esse direito que até o momento, o Brasil não conhecia. A saúde como direito no Brasil é uma novidade. Porque se a gente olha o que eram as políticas de saúde no Brasil até 1988 era só para os trabalhadores de carteira assinada – que foram todas as políticas desde Vargas a Ditadura. Era muita população excluída do direito à saúde, principalmente a população dos campos, pessoas que não tinham um emprego formal. Para elas, sobravam as Santa Casas de Misericórdia e os hospitais filantrópicos. E por isso que hoje ainda com o SUS, as Santa Casas e os próprios hospitais filantrópicos continuam tendo força”, explica.
Houve em 1979 no Brasil, um movimento importante de agentes de saúde em Brasília que agrupou técnicos, médicos e intelectuais com o objetivo de atuar como mecanismo de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa em saúde coletiva para fortalecimento mútuo das entidades associadas. O diálogo proposto ampliava a luta pelos direitos dos brasileiros em vários setores da sociedade através do pensamento do que seria saúde coletiva. A Associacão Brasileira Coletiva de Saúde contou com a própria população. Aderiram ao movimento voluntários que não tinham uma formação na área mas faziam parte da sociedade e necessitavam de melhorias na saúde. Eram as mães, professores de escolas primárias, comunidades negligenciadas, pessoas que compreenderam a saúde como um eixo que se ramificava para garantir outros direitos. Desta forma, o Brasil inicia sua reforma sanitária. “Se todos os direitos não são dados são conquistados pelo povo, muita gente fala que o direito a saúde no Brasil foi um direito que veio das ruas. Quando, em 1990,1992, começa a se instaurar o SUS, o apoio efetivo dos governos não é efetivo. O SUS nasceu capengo e não foi entendido na sua totalidade. Este sistema vem de uma visão muito diferente de saúde. A reforma sanitária brasileira não era só ter hospitais. Dependia de outras políticas públicas como ter acesso a Educação de qualidade, transporte público de boa qualidade. Quem lutava pelo direito a saúde não estava lutando por hospital estava lutando por boas condições de vida pela população. Para a população mais carente que vivia ao meio a tantas desigualdades sociais. É um grito de igualdade por que? O que diferencia o direito à saúde no Brasil e na Colômbia são os princípios. O SUS tem três pilares universalidade (para todos), integralidade (o ser humano visto por todas as suas necessidades complexidade) e Equidade (dando mais a quem mais precisa). Na Colômbia, os princípios são de eficiência, auto-sustentável e a ideia de liberdade de escolha – a ‘fábula do capitalismo’ que Milton Santos fala, como se todos tivessem dinheiro para escolher. A reforma incorpora todo uma discussão marxista ao campo da saúde, ampliando a visão de saúde”, ressalta Lopez.
Contudo, Yeimi Lopez alerta que a prática do SUS como foi concebido é diferente dentro do território brasileiro porque cada estado suprime ou oferece benefícios a depender da vontade política. Ou seja, se observamos o estado do Paraná a ideia de SUS, com uma visão ampla de saúde que afeta outros setores da sociedade como educação, trabalho, renda, qualidade de vida, atende mais aos anseios do que foi pensado pela área de saúde coletiva. É mais próximo do SUS formal. O mesmo não ocorre na região nordeste do Brasil. A saúde como uma complexidade de variáveis sociais é ignorada, pois há falta de vontade política, de administração pública que encampe a ideia e deixe de mostrar o SUS/real. “A gente como população ajuda a reproduzir esta visão. O que se tem de ideia do SUS é que o SUS é para os pobres, o SUS é ruim, tem fila, não consegue atendimento. São representações sociais. Eu sempre pesquisei a oncologia que é financiada pelo SUS. Quem consegue tratamento são as pessoas de classe média alta porque os planos de saúde  – não cobrem os tratamentos de alta complexidade. Este grupo consegue furar a regulação (mecanismo holístico que indica a pessoa para receber tratamento médico adequado) através de pedidos de favor pessoal. Quem mais precisam enfrenta longos itinerários até chegar a uma solução. Eu mesma sou usuária do SUS, mesmo sendo estrangeira”.
Ao expor a fábula que o SUS não é o ideal, Yeime Lopez mostra que a violência contra o cidadão não ocorre somente através da arma como muitos discursos pontuam na atualidade. Existe uma violência institucional que deturpa a aplicação das normas estabelecidas pelo SUS. Lopez lembra que os remédios de alto custo que é obrigada a tomar foram adquiridos após pendengas judiciais contra o governo colombiano para obter o direito aos medicamentos. “Eu briguei pelo meu direito à saúde na Colômbia. Foi um ano de terríveis humilhações. A gente pode dizer que a violência não será só pelas vias das armas, é uma violência institucional fortíssima, a gente é deixado a beira da morte. O hospital fecha a porta na sua cara”.
O que pedir para a administração política do Brasil?
 
Diana Ruiz  aponta como o Brasil pode efetivar e melhorar as diretrizes colocadas no artigo 196 da Constituição Federal.  O carro chefe do SUS é atenção primária que trabalha na promoção e na prevenção do combate a doenças crônicas. Dentro da visão de saúde coletiva que é multidisciplinar, a atenção primária é um serviço de extrema importância para garantir o acesso aos direitos previstos em Constituição. É esta ação que procura compreender como as propostas políticas dentro de territórios podem ou não alavancar outras questões ligadas ao mercado de trabalho, à educação. Na opinião de Ruiz, a visão mercadológica da saúde incentivada indireta ou diretamente por políticos que estão ou pretende estar na gestão pública minam o direito do brasileiro a ter acesso à qualidade de vida no momento que apoiam empresas privadas a venderem serviços de saúde, quando o Estado deveria investir no que esta no artigo 196. “Esta onda neoliberal que chegou agora ao Brasil, acompanhada de uma reforma política, limita a atenção primária.  A atenção primária é fundamental para organizar a demanda desde o serviço básico até os serviços de alta complexidade na saúde. Mas não é o que o mercado quer?”
A onda promovida pelo sistema capitalista coopta ideias que poderiam contribuir para a diminuição da pobreza na América Latina. Os governos apoiam os setores privados da saúde e deixam a atenção primária de lado porque as empresas privadas teriam seu lucro diminuído. Os planos populares seriam um argumento para convencer o cidadão que como não há atendimento imediato no SUS, pagar uma consulta ou exame seria uma saída. Contudo, o que ocorre é que a última reforma política realizada no Brasil não considera a saúde coletiva e menospreza a visão de ‘promoção de saúde’ que garante à sociedade acesso ao que tantos almejam: qualidade de vida. Diferente de prevenção que visa diminuir o aparecimento de doenças através de exames preventivos (papanicolau, diabetes, flúor na água), a promoção da saúde foca na inclusão de todas as políticas públicas, tendo um olhar completo sobre o cidadão. “É uma questão complexa porque é uma questão de Estado. Sozinhos os agentes de saúde só fazem prevenção e não promoção de saúde. Promoção de saúde precisa de políticas intersetoriais.  No caso do Brasil, a saúde é um direito. No caso da Colômbia não era. Só recentemente. No Brasil, a reforma sanitária brasileira é uma reforma de base. Na Colômbia, é uma reforma feita para atender uma demanda do mercado externo”, afirma Ruiz.
Saúde x O imaginário popular 
Quantas vezes não se ouviu de parentes, amigos, conhecidos que não tem como confiar no SUS? E que a Europa tem um exemplo que deveria ser seguido em termos de saúde pública? Muitas dessas ideias não correspondem ao que o Sistema Único de Saúde é. Como já foi citado, uma situação é ter instrumento legal e governantes não utilizarem em prol de permitir em nome nome da livre iniciativa que se compre saúde. Outra questão é não conhecer como são as políticas públicas dos países do continente europeu. A comparação não corresponde a uma verdade por conta de variáveis sociais distintas e de propostas políticas diferentes. Basta lembrar que os países do continente europeu, em sua maioria, tem uma base administrativa e política no sistema capitalista que, por vezes, objetifica pessoas.
Dentro deste sistema, são criados organismos para defender a manutenção de programas e ideias que protejam o objetivo maior que é o lucro. E a saúde esta entre os itens que geram dinheiro para este sistema que beneficia pouquíssimas pessoas. Existe uma rede que se conecta e se auto-proteje, indicando o que é certo ou não para países em desenvolvimento. É o caso da Colômbia cujo governo diz que saúde é um direito, mas para que o cidadão tenha esse direito ele precisa pagar uma parte ou esperar por um período longo um atendimento de saúde que é mínimo. Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade criada em 1948, subordinada a ONU, e sediada em Genebra, na Suiça, apoia o desfinanciamento do sistema público de saúde em qualquer país, o que pode ocorrer é uma especulação da saúde no mercado, um favorecimento indireto para a privatização da saúde, e uma fortalecimento da indústria farmacêutica. “Aí o SUS não é rentável. Todos nós, pessoalmente, estamos totalmente saudáveis e produzindo como a OMC garante?”, provoca Yemi Lopez.
Em outras palavras, criar um padrão imaginário do que é saúde foge totalmente da realidade, pois existem determinantes sociais de saúde que combinadas vão muito além do processo patológico ou biológico, visão ultrapassada da medicina imposta pela filosofia positivista. Saúde significa analisar as questões individuais, genética, estilo de vida, saneamento básico, habitação, transporte, educação. “São questões estruturais. Se essas estruturas não existem, elas afetarão o nosso processo de adoecimento. É o que Michael Foucault vai discutir em ‘Microfísica do poder’. É preciso olhar para as causas das doenças, como sendo uma questão social. O SUS tem uma visão ampla da saúde”, finaliza a professora do ISC-UFBA.
Texto: Vaneza Melo/Foto: Juliet Luft
 
 

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