A arte fora da arte

Sob a coordenação de Marilei Fiorelli (UFRB), a última mesa-redonda desta quinta-feira  trouxe ao público o tema “Arte e cultura no Sul Global”. Fiorelli ressaltou que a mesa propôs olhares pontuais sobre trabalhos e reflexões da arte através das pesquisas de Priscila Miraz (UFRB), da visão do artística Tonico Portela (UFRB) e das ações culturais através da arte de rua trazida pelo grafiteiro Ary Frost. O debatedor da noite foi o artista visual Zimaldo Melo. 

Priscila Miraz, professora da UFRB, destacou como ponto a história da fotografia latino-americana apresentando um recorte sobre a presença feminina nos fotoclubes e a produção cubista imagética e escrita. “A própria história da fotografia é um assunto recente, surgindo no século XIX. Pesquisar sobre a relação do fotoclube na América Latina, é muito mais recente porque estamos falando do século XX”, afirma.

A pesquisa realizada por Miraz foi realizada através de dados coletados junto ao acervo do Foto Cine Clube Bandeirantes de São Paulo, criado em 1939. Os boletins pesquisados foram editados entre os anos de 1940 e 1950. Procuraram-se informações sobre as fotógrafas  amadoras brasileiras. Comparativamente, Miraz constatou que no México, houve um foto clube dirigido por uma fotógrafa, o La Ventana, coordenado por Ruth Lechuga, e na Argentina, o foto clubeLa Carpeta de los Diez dirigido por Annemarie Heirinch.” Esses boletins criavam uma rede de informações entre outros países como Japão, Colômbia, Índia, resultando numa rica historiografia, material importante para compreendermos a fotografia moderna no Brasil”, revela a professora da UFRB.

As fotógrafas no Brasil se filiavam ao foto clube, mas não tinham o mesmo reconhecimento que os homens, especialmente como “produtores de imagem”  ou editoras dos periódicos. Também não cabia às mulheres julgar em em salões os trabalhos apresentados. Neste sentido, a pesquisa realizada por Miraz foca na produção das mulheres dentro do fotoclube, o perfil de cada uma e como pensaram a fotografia. Annemarie Heirinch, por exemplo, mostra um tipo de fotografia subjetiva, além de expressar uma oposição às relações sociais impostas na época. Havia uma hierarquia dentro do fotoclube que se configurava na figura masculina como os produtores de imagem. Eram profissionais liberais, intelectuais, que legavam às mulheres funções secundárias dentro dos registros informativos da época. Os fotoclubes no México mostravam-se mais organizados. 

A primeira mulher que terá um registro dentro dos boletins do Foto Cine Clube Bandeirantes é Bárbara Mors, em 1948. Isso ocorreu porque Bárbara Mors participou do VII Salão Internacional de Fotografia, identificada na legenda do boletim como a “única expositora paulista”. A fotógrafa não foi citada por seu desempenho artístico ou técnico. Sua obra também não foi mencionada em obras, sendo as resenhas críticas realizadas também por homens. 

Entre 2015 e 2016, sob curadoria de Rosangela Rennó, houve uma exposição no Museu de Arte de São Paulo, MASP, que levou ao público 279 fotografias e 85 artistas relacionados ao Foto Cine Clube Bandeirantes. Além de informativos destacar nomes como Thomas Farkas, German Lorca e José Oiticica Filho, os fotógrafos estavam em maior número que as fotógrafas na mostra. Miraz afirma que existe também a questão da memória preservada pelas famílias. “Em 2015, um parente de Bárbara Mors fez uma exposição sobre a trajetória da artista, na Vila Madalena em São Paulo. Mas essas coletâneas são coisas raras”.

Ainda dentro da imagem de exclusão dentro das Artes Visuais, o grafiteiro paulistano e discente da UFRB, Ary Frost, trouxe uma visão da arte no Sul Global a partir das intervenções urbanas realizadas em São Paulo nos inícios dos anos de 1980, as pichações. Na descrição de Frost, a gestão pública de Jânio Quadros, prefeito de São Paulo entre 1985-1989, em plena redemocratização, tinha atitudes que rechaçavam o movimento dos pichadores que moravam na periferia da metrópole, chegando a colocar em Diário Oficial que os pichadores “Juneca e Bilão vão pichar a cadeia”, em tom de ameaça. “Os pichos surgem no Vale do Anhagabaú e representavam a ocupação dos espaços. Era uma decoração sobre a arquitetura da cidade. Era uma forma de existir dentro do meio urbano excludente de São Paulo. As ações dos pichadores são vozes políticas, uma ideologia dentro da cidade. A ideia do picho surge através das bandas de rock e uma propaganda que tinha na rodovia Raposo Tavares com uma caligrafia diferente que dizia ‘Cão Fila km 26’. O cara não era pichador, mas a forma da escrita inspirou os rebeldes que lutavam contra a ditadura”, conta.

Frost critica também como os grandes veículos de comunicação impressa de São Paulo tratavam a pichação. Não era só o Diário Oficial que publicava títulos discriminatórios sem uma análise sociológica do que representava essa ação. Em novembro de 1991, os pichadores Neto e Binho saem de São Paulo e miram seus sprays no Cristo Redentor no Rio de Janeiro. Os garotos-pichadores viraram alvo da mídia nacional e uma fila de advogados, psicólogos, administradores públicos, e uma população que não pichava pediam uma punição. A Justiça entendeu que os pichadores teriam que prestar serviços públicos pelo ato. Quando Neto e Binho foram questionados sobre o porquê da pichação responderam que queriam ficar famosos.   

 Em 2016, uma mostra homenageou o pichador número um: #Di# – Edmilson Macena de Oliveira, intitualada “Pichar é humano” (o título da exposição é frase de #Di#, assim como o símbolo hashtag que era já era incorporado a sua assinatura). Pichar para ele era criar e recriar a própria cidade. Nos anos 1990, pichou o Conjunto Nacional, na avenida Paulista e logo depois ligou para um jornal para fazer uma matéria. “Ocupação do espaço ocorre porque a periferia não é vista pelo capitalismo neoliberal. Então, vem a ideia ‘eu existo e eu estou aqui e vc vai ter que me aguentar’. Esse apagamento dos individuos dentro da metrópole provoca uma comunicação fechada. Tem gente que está discutindo a legalização. Mas muitos pichadores entendem que a cidade vai cooptar a ação”, alerta Frost.

Tonico Portela abordou sobre sua pesquisa no doutorado, finalizado em 2018. A relação apresentada neste trabalho fala da arte e espiritualidade. Dentro do processo criativo do professor do Bacharelado de Artes Visuais da UFRB, os materiais, os suportes e o espaço requerem uma investigação abrangente. Sua intenção foi fazer uma pesquisa em artes visuais, quando o artista fala do próprio processo criativo.  Desde a graduação  Portela utiliza a arte da impressão como conceito, hibridizando gravura e cerâmica. No mestrado, veio a potência da cor para valorizar objetos cotidianos e no doutorado a palavra é tratada como imagem. Foi na exposição “Palavras Ressonantes”, realizada em outubro de 2017,  que o artista propõe ao público uma imersão do olhar e do sentir. Arte e espiritualidade foram colocadas na performance  “TeaAmo”. O artista colocava um saquinho de chá carimbado com a palavra “amor” dentro da xícara, vibrava um sino e silenciosamente pronunciava um mantra enquanto o espectador tomava a bebida. 

Antes de conduzir ao debate, Zimaldo Melo sintetizou as principais ideias que mostram desprentenciosamente um caminho de rompimento com o sistema da arte. Desde a apresentação de Priscila Miraz que traz a questão de uma estrutura social rígida do foto clube, afastando a mulher de funções chave; passando pela a “arte periférica” defendida por Ary Frost, até chegar a questão ritualística diante do processo artístico de Tonico Portela, a mesa enfatizou uma arte que se afasta dos padrões comerciais exigidos pelo mercado neoliberal. “Eu não sei se eu consigo produzir dentro do sistema da arte estabelecido. Eu não tenho esforço, mas acho louvável quem faz isso, de me adentrar em trabalhos grandiosos, enfim. Se vier será ótimo. Meu caminho é com os meus estudantes, e minha arte é paga com o meu trabalho aqui”, finaliza Tonico Portela.  

Texto Vaneza Melo – Foto Edgar Oliva

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