Sociólogos dialogam sobre a atualidade política da América Latina revisitando Florestan Fernandes e Fals Borda

A segunda mesa-redonda desta quarta-feira chamou atenção por trazer ideias elaboradas há mais de quarenta anos por dois pilares da sociologia na América Latina: Florestan Fernandes e Orlando Fals Borda. Com o tema Violência, processos guerrilheiros e revoluções inconclusas na América Latina: reflexões comparativas a partir de Florestan Fernandes e Orlando Fals Borda, o coordenador Diogo Valença (UFRB) recebeu como palestrantes a professora Fátima Lucena, titular do departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a doutorando Fátima Silveira da Universidade de São Paulo (USP). Como debatedor foi convidado o professor Sedi Hirano do Departamento de Sociologia da USP.

A doutoranda Fátima Silveira (USP) iniciou o diálogo colocando como a primeira questão a semântica, enfatizando que os estudos de Florestan Fernandes e Orlando Fals Borda apresentavam a interpretação de fatos a partir da palavra. Para os autores, a operação semântica serve de conceito para compreender as ações sociais desenvolvidas na América Latina desde da colonização, podendo ser aplicada até os dias atuais. “Na visão de Florestan Fernandes e Fals Borda, as palavras não são neutras”, revela a pesquisadora.

Acompanhando esta lógica, Fátima Silveira mostrou como Florestan Fernandes interpretou a palavra “revolução” a partir do conceito de semântica. O Golpe de 1964, no Brasil, por exemplo, utiliza a palavra revolução para confundir e mistificar  o conceito em si. A análise de Florestan Fernandes apresenta a palavra “revolução” como sendo a mudança estrutural consolidada (e violenta) realizada por atores sociais específicos. São considerados maioria dentro do contexto social e desprivilegiados que alcançariam o equilíbrio necessário para impor uma nova ordem. Na análise do sociólogo, a palavra que deveria ser utilizada seria “contrarrevolução” porque barrou a ação de mudanças estruturais, pois a revolução apresenta uma contra ordem com caráter socialista.

Na América Latina, Florestan Fernandes indica que houve revoluções interrompidas e pensa ainda em revolução como mudança estrutural e contrarrevolução como interrupção da própria ação revolucionária. Como exemplo, o Golpe de 1964 apresenta uma ordem, pois gerou o mínimo de democracia para romper com uma determinada dependência. A palavra revolução, neste sentido, mostra que houve uma ordem de justiça social. Contudo, dentro do território analisado, a interrupção da revolução ocorre porque a burguesia latino-americana e os aliados externos (imperialistas) se valem da ordem capitalista. Daí a revolução ser interrompida porque não há setores fortes dentro da ordem exigidos pela revolução. 

Este processo é percebido por Florestan Fernandes e Fals Borda desde a independência dos países da América Latina, como processo de descolonização onde interesses externos e a burguesia, mesmo aderindo à independência ou aceitando a mesma, mantém os padrões de racismo até hoje. A pesquisadora avalia que após a primeira revolução interrompida, a descolonização, segue para a segunda revolução interrompida: a abolição da escravidão. Brasil e Colômbia tiveram trabalho escravo. A abolição se tornou, nas palavras de Florestan Fernandes uma revolução de branco para branco. A abolição, no momento que acontece, o processo de escravidão não era mais visto como lucrativo para as elites e era um empecilho  para o desenvolvimento para os países. Portanto, a abolição não ocorreu para libertar a população negra da escravidão, ocorreu para beneficiar os senhores de escravos. “É por isso que a desigualdade racial e a estrutura racial da sociedade fica inalterada mesmo depois da abolição”, pontua Fátima Silveira. 

Na perspectiva de estudos nacionais, não se pode pensar o desenvolvimento do capitalismo como se fosse o mesmo em toda parte. As etapas e os estágios de cada país mudam. Fátima Silveira alerta que se pensava o capitalismo como gerador do mesmo  resultado em diversos países. Contudo, toda a análise de autores intelectuais latino-americanos decidiram mostrar que o capitalismo não é o mesmo em todas as partes e que ele produz resultados diferentes. Estes pensamentos são de países de origem colonial e acontecem por causa dos modelos de revolução burguesa, chamada também de clássica revolução burguesa democrática nos países centrais. Nos países de origem colonial tiveram outro tipo de revolução, de acordo com Florestan Fernandes, uma revolução burguesa autocrática que não se consolida com o processo de democratização social,  como também é contrária a democracia. Os oprimidos nunca têm voz. É uma democracia da minoria elitista, segundo o autor.

Já Fals Borda debate sobre  o modelo de democracia adotado na América Latina. A crise nas instituições democráticas apresenta um modelo de democracia restritro ao ritualismo que elege um presidente – entende por democracia Estado e nação, e o modelo de democracia participativa, São dois modelos de democracia independentes. Um foca no povo e outro na participação popular. A democracia restritiva contrapõe ao modelo de democracia apontada pela declaração de direitos humanos, e apresenta um Estado autocrático burguês pelos quais a transformação capitalista favorece a uma minoria privilegiada latino-americana uma democracia sem conteúdo democrático.

“O desenvolvimento do capitalismo dependente selvagem concilia colonialismo e capitalismo – formas arcaicas de exploração, apropriação de riquezas para burguesia”, revela Fátima Silveira que avalia ainda os mínimos direitos da população questionados pela burguesia, quando esta acredita que aqueles não sejam de interesses nacionais. É um regime arcaico revitalizado que apresenta atores sociopatas que geram a violência estrutural inerante à sociedade capitalista, de acordo com as análises da pesquisadora. Em outras palavras, qualquer luta política torna-se caso de polícia.

A professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco, Fátima Lucena, endossa a apresentação da pesquisadora da Universidade de São Paulo, analisando que há mais de cinco décadas o Brasil apresenta o quadro de democracia representativa.”Fiz as contas e cheguei a conclusão que tivemos 52 anos de democracia representativa que é seletiva até hoje”, declara Lucena, pois a realidade brasileira ainda reflete o consenso de dependência externa que mantém os privilégios originários das capitanias hereditárias que ainda hoje invisibiliza quem realmente produz as riquezas do Brasil.

Na opinião de Lucena, a violência apontada por Fals Borda, violência estrutural, se deve ao processo de desumanização e a valorização da economia como objeto primordial. “A etmologia da palavra economia significa ordem na casa, arrumar a casa. Mas as pessoas com sua administração são relações sociais”,  ressalta ainda a subjetividade como elemento importante dentro da relações sociais e explica a citação reforçando a exposição de diálogos anteriores promovidos durante o II Encontro Brasil-Colômbia e VIII Seminário do PPGCS-UFRB.

” Vou concluir dizendo o seguinte: estamos vivendo um momento histórico em que a barbárie predomina. Eu trabalho em minha pesquisa com “tráfico de pessoas” que é a expressão mais profunda da barbárie. Porque é a transformação de seres humanos em coisas, em mercadorias. Então, este movimento da história, ele existe desde antes o Neolítico. E aí vai se processando e aprofundando em vários momentos da história e hoje na contemporaneidade a gente vê a presença disso. Também me recuso a trabalhar com a ideia de cidadania porque é uma construção burguesa que expõe, na realidade, uma coisa chamada lutas de classes”. 

A finalização do diálogo proposto por esta mesa coube ao professor do Departamento de Sociologia da USP, Sedi Hirano. Em sua fala, lembrou da convivência com Florestan Fernandes, sendo seu assistente, e que a pesquisa de Fátima Silveira apresentou uma radiografia exata do pensamento desse sociólogo que é uma referência. “Existe um tema central dos dois autores que é exatamente a questão da educação e da formação. Eu conheci Florestan Fernandes quando ele fazia a campanha pela Escola Pública. Essa questão da pesquisa está fortemente presente no Florestan Fernandes, nas décadas de 1950 e 1960, tendo como raiz central para a formação do brasileiro como um todo. Uma perspectiva holística era voltar para a realidade e nesta realidade sem privilegiar uma elite. Era uma pesquisa, que tanto para Fals Borda quanto Florestan, seria a pesquisa científica. E Fals Borda coloca de que nós não podemos dogmatizar a realidade. Nós não podemos ver a realidade através de dogmas. E Florestan, desculpe eu falar, na orelha do meu livro, fala que nós não podemos ler os autores clássicos e ir para realidade com bloqueios paroquiais e ideológicos. E com isso, ele está fazendo uma crítica tanto a esquerda quanto a direita. E neste sentido nós devemos combater o quê? Os dogmatismos. Isto é importante porque Fals Borda e Florestan Fernandes criticam os cientistas sociais que levam o tema da pesquisa através de idiosincrasias paroquiais”, revela.

Hirano pontuou ainda que Fals Borda faz uma crítica que o sociólogo ou o cientista, muitas vezes, no lugar de pesquisar a mudança social, acaba por reproduzir a própria estrutura. Para isso, apresenta uma palavra que resume a ação esperada: subversão. Esta palavra representa o rompimentos com valores dominantes e para isso ocorrer o sociólogo ou cientista deve compreender que se trata de superar modelos cultural, político e econômico mantido pela classe dominante. Este seria o caminho para um diagnóstico global mais apurado, abandonando a ideia que o fragmento represente a realidade. Isto implica, por exemplo, numa segunda questão que trata da investigação em comunidades camponesas, afrodescendentes e indígenas. Ao investigar, o sociólogo/cientista deve estar ciente que há diferenças de perfis social, cultural, político e econômico.

A questão da violência para Hirano perpassa pela própria história do capitalismo mercantil. O professor da USP explica que a violência é a marca registrada do capitalismo. “O roubo, a corrupção, a rapina, estavam presentes, de uma forma ou de outra na produção”. Lembra que a questão da propriedade, personificação do capital, de acordo com Marx, revela que o trabalhador é apenas um instrumento para manter esse jogo social e isto deixa evidente a apropriação extramamente violenta. “Então, na própria constituição do capitalismo tem essa violência. Por isso, Marx fala que o Estado é da classe dominante. Essa violência nem sempre está completamente no Estado, mas está também no interior da sociedade civil. Por isso, a questão da subversão, como certo tipo de meta, projeta objetivos que devemos construir em última instância . O Estado institucionaliza a violência, torna a violência, em termos de direito, de uma minoria extremamente restritiva “, finaliza. 

 

 

 

Deixe uma resposta