A figura do feminino e a Antropologia da Performance

A segunda palestra desta quinta-feira começou com muito Axé. O palestrante John Cowart Dawsey fez uma referência aos Ibejis, Erês, Cosme e Damião. “Performance é também brincar com o perigo. Vou levantar aqui discussões dos anos 1970, período que gera uma insatisfação com certas abordagens. Chamavam de também de abordagens dramaticalizante na antropologia que é verificar as regras para viver numa sociedade, quais são as posições que você deve ocupar, tudo que você precisa saber para ser membro desta cultura. Eu acho que a performance nasce meio a contrapelo disso, interessada na ação.Tem uma coisa de frágil na ação, mas muito poderosa também. Ela lida com aquilo que podemos chamar de elementos arredios”.
 
Dawsey traz para o debate a ideia de performance de Richard Schechner diretor teatral, teórico e professor de performance da Tisch School of the Artes, da New York University. Schechner mostra a antropologia com novas abordagens através dos tipos da performance estudada. O professor da New York University acredita que o ritual, o drama, o teatro, e as demais expressões que ocorram não são somente um objeto de estudo, como também uma prática intelectual ativa e artística. Dentro da perspectiva apresentada por Schechner, Dawsey afirma que a arte, neste sentido, toca na vida e a vida toca na arte. Cria-se, assim, um campo onde os limites variados, “são pontos de contato, entre o pensamento antropológico e teatral”, como afirma Dawsey citando o artigo de Schechner (foi o primeiro a falar da antropologia da performance). 
 
O professor do Departamento de Antropologia da USP revela que fez uma viaja, certa vez, até o santuário de Aparecida do Norte (SP), com um determinado grupo. O percurso de peregrinação e uma visita a um parque de diversão fizeram que Dawsey percebesse a performance do corpo em dois momentos distintos: sagrado e profano. Sua análise reflete sobre o corpo em movimento dentro de um espaço, a basílica de Aparecida, santa padroeira do Brasil, e o parque de diversões que proporcionava como entretenimento a visão e performance de corpos femininos bestializados. Eram apresentados ao público a mulher gorila, a mulher cobra e a mulher lobisomem. Dawsey lembra que chamou sua atenção a mulher lobisomem porque ela pulava dentro da jaula e uma hora rompe com o cativeiro e se mistura à platéia que foge com medo da performer. Pode-se trazer alguns elementos para dialogar sobre a questão.
 
A primeira refere-se ao espaço da performance, a própria cidade de Aparecida do Norte que abrigará o sagrado (a basílica de Aparecida) e o parque de diversões (lugar de entretenimento, lado profano). A sequnda questão remete a presença do corpo feminino e suas representações e ações. Como relata Dawsey a santa Aparecida surgiu no século XVIII no Brasil e foi achada por um grupo de pescadores. Uns afirmam que o que se encontrou foi só a cabeça, outros que foi só o corpo da santa. Representativamente, na visão do professor do Departamento de Antropologia da USP, o que se vê é rosto mais um manto. É um tipo de corpo que faz uma performance. No parque de diversões, o corpo da mulher lobisomem “atrita” junto a outros corpos, outra perfomance. E por fim, a performance do próprio visitante que foi para estes dois espaços. “O primeiro ponto de contato foi a transformação. O ator ou a atriz em cena pode virar outro personagem. É uma experiência liminar. É um deslocamento que você se transforma e não se transforma no outro”, explica Dawsey.
 
Intensidade da performance é outro ponto de contato. Dawsey explica que é um momento de fluxo que entra numa experiência de transe. O estado de fluxo acontece de diferentes formas: pode ser quando o escritor escreve sem censurar o pensamento; quando o peregrino passa pela santa e permite que o corpo reaja, se expresse; quando a mulher lobisomem arrebenta as grades e cria um momento de emoção. “A intensidade da performance é liberação de energia”, explica.
 
“O terceiro ponto é interações público e performer. Diferentes performances que mostram um tipo de relação. O público que foi para a basílica foi o mesmo público do parque de diversões. Só que muda muito”. Dawsey lembra que os mesmos atores sociais foram a espaços diferentes: um não há pagamento de entrada, noutro sim. Um propõe a relação com o milagre, a cura, outro com a diversão. “Fica, às vezes, difícil de saber quem é performer e quem é público”. Já o quarto ponto a ser analisado é a sequência total da perfomance como um todo. De acordo com Dawsey, Schechner pensa neste ponto como um processo, como se houvesse um planejamento do corpo como agir, seja até chegar a santa, seja no teatro, seja no parque de diversão.
 
A transmissão do conhecimento do pensamento performático é mais um ponto de contato. Trata-se da transmissão de um saber. São formas de contar, por exemplo, como se deu a experiência na basílica de Aparecida ou do parque de diversões que podem ser feitas através das narrativas orais. O último ponto de contato concebido por  Richard Schechner  é como as performances são geradas e avaliadas. Dawsey conta que na volta ao Jardim das Flores, Piracicaba, o grupo avaliava as sensações diante ao ver a santa, mas muitos se referiam ao parque de diversões, a mulher lobisomem. “Uma mulher disse para mim, ao se referir à mulher lobisomem:’você sabe que ela é também filha de Deus?”  Além da observação relatada, Dawsey também enfatiza a sua própria observação de campo como as mulheres são importantes para o assunto performance. O professor do Departamento de Antropologia da USP aponta como grupos matrifocais porque revelam as figuras da mãe, da santa, da mulher lobisomem. Por fim, ressalta que a performance da mulher lobisomem pode representar como o corpo feminino se comporta no dia a dia, tendo mulheres “feras” para defender suas famílias.
 
Após a explanação de Dawsey, Amália Coelho,  mestranda do PPGCOM da UFRB e graduanda em Antropologia  pela Universidade Federal de Minas Gerais, apresentou seus estudos e ações práticas como artista performática. Junto com Dayane Gomes idealizou uma perfomance chamada Ìporí, que Yorubá significa culto à placenta. “O projeto teve uma etapa nacional e internacional – Brasil e Nigéria – e investiga as continuidades cosmogônicas africanas no Brasil a partir da água. Ìporí, na cosmogonia Yorubá, é um dos elementos da alma, simboliza a energia ancestral ligada a nossa cabeça (Orí), ao nosso ancestral (Eledá) e vem de uma inquietação dos desastres ambientais”.
 
Amélia Coelho é engajada e se compreende como tendo lugar de pertencimento como remanescente do quilombo Arraial dos Crioulos na Bacia do Rio Jequitinhonha em Aracuaí, em Minas Gerais. Esta aproximação fez com que percebesse o quanto os direitos na estrutura do Brasil, na perspectiva de incluir outras pessoas, “tem relações cosmopolíticas, relações de parentesco, relações que estão além da água como recurso”, afirma. A água foi o elemento utilizado para representar esta questão.” Eu saio um pouco da antropologia e comecei a trabalhar neste assunto como artista visual. Foi aí que cheguei na performance em eu levar as águas do Brasil para serem levadas para Oxum, na Nigéria. E essa performance se associa à antropologia em vários sentidos”.
 
O processo da performance foi construído, de acordo com Coelho, a partir de três partes: o próprio corpo como signo atlântico, a relação da deusa com a vida e materialidade representada pela quartinha, recipiente utilizado no Candomblé que evoca o objeto que concentra uma ligação entre o ser humano e o orixá. Como elemento fixo visual da perfomance, Coelho transportou para Nigéria o recipiente e as águas colhidas no Brasil. A performance consistiu em participar do maior festival para Oxum, dona das águas doces, na cidade de Osogobo, na Nigéria. Coelho carrega a quartinha e acompanha o ritual realizado numa floresta, pois a religiosidade africana concebe que o território pertence ao Orixá, incluindo os recursos naturais. Ao chegar próximo a margem do rio, a água da quartinha é derramada e ambas se misturam. 
 
Para encerrar a participação dos palestrantes, o debatedor Fábio Alex Ferreira da Silva (UFRB) abriu para o público participar com indagações pertinentes ao exposto. As questões mais relevantes foram as que tiveram uma ação comparativa entre Brasil e Nigéria quanto ao ritual, feita à Amália Coelho. As perguntas dirigidas a John Cowart Dawsey lembram a aproximação da performance com outras área de conhecimento e a subversão na performance como meio de protestar às normas.  

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